domingo, 25 de julho de 2010

Nietzsche é um bom companheiro - aula II

O sol insiste em não aparecer por estas bandas. Frente a chuvinha chata, volto eu para os estudos


Fragmentos Póstumos (Parágrafo 40(21)) (Cont.).


para que a unidade subjetiva, pensada segundo o modelo do corpo, possa existir é necessário que a consciência ignore determinadas perturbações dos demais órgãos que compõem essa mesma unidade complexa. Ou seja, para que a consciência possa manter e fazer funcionar adequadamente a sua função diretiva é preciso uma certa ignorância; com a completa transparência ou com a consciência absolutamente onisciente muito provavelmente não haveria possibilidade de que pudesse exercer adequadamente a sua função.
Comentário: O que acontece num indivíduo hipocondríaco.
Professor: É justamente isso. Ou seja, uma certa ignorância de base é condição fundamental do exercício otimizado da função superior da consciência.
Pergunta: Essa ignorância de base é não ter o controle total, é admitir que tem partes que escapam?
Comentário: E funciona automaticamente. O hipocondríaco quer ter o controle de tudo. Ele quer dar conta conscientemente de todas as funções dos órgãos ... se uma coisa escapa, ele quer saber porquê, pois ele não confia que o coração funciona automaticamente, que o intestino funciona...
Professor: Isso mesmo. Nós vamos ver isso de modo preciso em relação a esse texto que eu traduzi para vocês. Mas, percebam que isso daqui é uma coisa assim extraordinariamente diferente da posição iluminista tradicional, que justamente apostava o máximo possível na completa transparência da consciência.



Então, a ignorância seria constitutiva da consciência?
Professor: Seria constitutivo da função, de tal maneira que essa exigência de que a consciência pudesse tomar posse absoluta da unidade do sujeito, ou seja, de que a consciência pudesse funcionar como um núcleo absolutamente transparente da subjetividade, está sendo posta aqui em questão.
Comentário: Eu não sei se eu estou entendendo direito, mas eu fico pensando assim, as implicações políticas disso. São terríveis! Porque isso quer dizer que o povo tem necessidade de um ditador, dos grandes governantes, dos grandes políticos, e que as personalidades psicopáticas tem que existir porque.... tem a necessidade de uma certa ilusão, de sedução...
Professor: Olha, essa coisa que você está dizendo é tão apaixonante que eu não sei se daria para acompanhar você e dizer: tem de existir isso do ponto de vista do Nietzsche. Eu acho que o que Nietzsche diria antes seria: não que isso tem de existir, mas é compreensível que isso exista.
Comentário: Faz parte do mundo.
Professor: Exatamente. Ou seja, faz parte deste jogo aqui. É compreensível que exista e é compreensível que exista com tanta freqüência. E tem mais um outro ponto que ainda é mais terrível que isso, que é o seguinte: é ilusão pensar que você pode acabar com isso facilmente, ou seja, aqui há uma denúncia do otimismo de todas as formas de ilustração, ou seja, desta crença na onipotência da consciência
 




O eu do corpo não é o eu da gramática, não é o eu que simplesmente é a reprodução da função gramatical do sujeito na proposição. O eu do corpo, antes de ser dito, é realizado justamente nessa forma da unidade complexa e do múltiplo. Então, o corpo não é propriamente um eu que é dito, senão um eu que é produzido, feito.
O que ele está querendo dizer aqui é que esta unidade do eu que se funda na lógica e na gramática é unidade abstrata, é a unidade que decorre da simples função gramatical; enquanto que a unidade do eu que se realiza no corpo é uma unidade concreta, é uma unidade que se dá a partir de uma multiplicidade que é sempre mutável.



Aqui um eu é o eu do discurso; este eu que aparentemente é o núcleo da subjetividade, que deveria ser o autor desse processo, deveria ser o eu que pensa, mas que é muito mais espectador do que autor do processo todo. Aqui é uma outra maneira de problematizar a pequena razão e a grande razão, você lembrou muito bem disso, quer dizer, isso que eu chamo de eu não é este eu de que nós estávamos falando aqui, que é o corpo. Este eu que ocupa o núcleo da subjetividade, isto é, o eu da consciência, não é o autor do processo, ele é, no máximo, espectador do processo. Quem é, então, o eu? Quem faz isso. Aí a resposta é: eu não sei. E este eu não pode saber, justamente porque ele não é o autor. 
Porque eu ignoro as causas corporais do desprazer, do mal-estar, e porque eu não posso prescindir de encontrar uma causa - isso ele está falando da nossa cultura na verdade - então, nós inventamos causas psicológicas e morais e acreditamos piamente nelas. Então, todo mundo tem o direito de encontrar a causa da reto-colite ulcerativa do próximo.
"Sob tortura, quase todo mundo se confessa culpado; sob a dor, cuja causa física não se sabe, o torturado se questiona a si mesmo tão longa e inquisitorialmente até que ache culpado os outros ou a si mesmo: - como fez, por exemplo, o puritano que, conforme o costume, interpretava moralmente o baço afetado por um insensato modo de vida - isto é, como mordida da própria consciência moral."
  A lógica do ressentimento é esta que acredita no efeito de causas pura e simplesmente marginais, ou seja, precisamente a moralidade rígida é algo que é uma conseqüência das indisposições do corpo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário